quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O Capuchinho Vermelho ou como reencontrar a coragem de viver

O Capuchinho Vermelho ou como reencontrar a coragem de viver


O Herói dos contos é capaz de experimentar tudo, graças ao controlo do seu espírito e, mais concretamente, da atenção que dedica à realidade, uma vez que é esta que vai determinar o que ele vai viver. Ao deslocar a sua atenção, altera a sua experiência; ao desenvolver uma atenção inspirada, torna-se totalmente livre e pode fazer brotar uma realidade infinita que esteja de acordo com o seu coração, como no-lo demonstra o conto O Capuchinho Vermelho.

O Capuchinho Vermelho


Era uma vez uma linda menina de quem todos gostavam muito. A avó, então, essa nem sabia que mais lhe havia de dar! Certa vez ofereceu-lhe um capuchinho de veludo vermelho que lhe ficava tão bem que a menina nunca mais o tirou e assim passaram a chamar-lhe “Capuchinho Vermelho”.
Um dia, a mãe chamou-a e disse-lhe:
— Anda cá, Capuchinho Vermelho. Pega neste bolo e nesta garrafa de vinho e leva‑os à tua avó, que está doente. Vão fazer-lhe bem. Quando lá chegares não te esqueças de lhe dar um beijo e não andes a bisbilhotar pela casa toda. Agora, é melhor ires antes que fique muito calor. E não te afastes do caminho senão tropeças, cais, partes a garrafa e a avó fica sem nada.
― Vou fazer tudo direitinho! ― respondeu o Capuchinho Vermelho, despedindo-se da mãe.
A avó vivia no meio da floresta, a cerca de meia hora da aldeia. Na floresta, o Capuchinho Vermelho encontrou o lobo, mas, como não sabia que ele era mau, não se assustou.
― Bom dia, Capuchinho Vermelho ― disse-lhe ele.
― Bom dia, senhor Lobo.
― Onde vais tão cedo?
― Vou a casa da minha avó.
― E o que levas no avental?
― Levo um bolo que fizemos ontem e uma garrafa de vinho. São para a minha avó, que está doente, ganhar forças.
― E a tua avó, onde é que ela mora?
― Mora um pouco mais longe. A casa fica debaixo de três grandes carvalhos e, mais adiante, há três nogueiras. Já a deves ter visto.
O lobo pensou: “Esta menina tenra deve ser uma delícia. Bem melhor do que a avó. Tenho de arranjar uma artimanha para as comer às duas”.
Acompanhou o Capuchinho Vermelho por uns momentos e disse-lhe:
― Capuchinho Vermelho, já viste que lindas flores? Por que não olhas à tua volta? Tenho a impressão de que nem ouves o chilrear dos passarinhos! Vais a direito como se fosses para a escola e, no entanto, aqui na floresta é tudo tão divertido!
O Capuchinho Vermelho levantou os olhos e viu os raios de sol a dançarem entre as árvores, por todo o lado flores, e pensou: “A minha avó havia de ficar toda contente se eu lhe levasse um ramo”.
Saiu do caminho e pôs-se a colher flores. Mal colhia uma, logo via outra mais bonita adiante, corria para lá e assim se foi embrenhando na floresta.
Quanto ao lobo, esse correu a casa da avó e bateu à porta.
― Quem é?
― É o Capuchinho Vermelho. Trago-te um bolo e vinho. Abre!
― Dá a volta ao trinco ― gritou a avó. ― Estou demasiado fraca para me levantar.
O lobo deu a volta ao trinco, empurrou a porta, entrou e, sem dizer palavra, foi direito à cama da avó e comeu-a. Depois vestiu-se com as roupas da velhinha, pôs a touca, deitou-se na cama e correu as cortinas.
Entretanto, o Capuchinho Vermelho apanhava flores, e só quando já não conseguiu pegar em mais é que se lembrou da avó e se pôs de novo a caminho. Ficou espantada ao ver a porta aberta e, quando entrou, tudo lhe pareceu estranho. “Meu Deus – pensou – que medo tenho hoje, quando gosto tanto de estar com a avó!”
Deu os bons-dias, mas não lhe responderam. Foi até à cama e abriu as cortinas. A avó, deitada com a touca enfiada até aos olhos, tinha um ar esquisito.
― Oh! avó, que grandes orelhas tu tens!
― São para te ouvir melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes olhos tu tens!
― São para te ver melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes mãos tu tens!
― São para te abraçar melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que boca tão grande tu tens!
― É para te comer.
Dizendo isto, o lobo saltou da cama e devorou o Capuchinho Vermelho.
Já sem fome, voltou a deitar-se, adormeceu e pôs-se a ressonar muito alto. Um caçador que, precisamente naquele momento, ia a passar por ali, pensou: “Como é que a velha está a ressonar tão alto? É melhor eu ir ver se ela não precisa de nada.”
Entrou no quarto e aproximou-se da cama: o lobo estava lá deitado.
― Até que enfim que te encontro, grande patife! Ando há tanto tempo à tua espera.
Pensou em apontar-lhe a arma; mas lembrou-se de que o lobo podia ter devorado a avó. Assim, não atirou; pegou num par de tesouras e pôs-se a abrir-lhe a pança. O lobo continuava a dormir. Ao dar as primeiras tesouradas, o Capuchinho Vermelho saltou lá de dentro a dizer:
― Ai que medo eu tive! Como estava escuro dentro da barriga do lobo!
Depois foi a vez de a avó sair, ainda viva, mas mal podendo respirar. O Capuchinho Vermelho foi rapidamente buscar umas pedras grandes e com elas encheu a pança do lobo. Quando este acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão pesadas que caiu ao chão e morreu.
Então os três ficaram todos contentes. O caçador ficou com a pele do lobo. A avó comeu o bolo e bebeu o vinho que a neta tinha trazido e sentiu-se melhor. Quanto ao Capuchinho Vermelho, pensava: “Nunca mais volto a desviar-me do caminho quando a minha mãe mo proibir.”


O Capuchinho Vermelho é um dos contos mais conhecidos do repertório e seríamos tentados a dizer que já tudo foi escrito sobre ele. Será que a moral da história não é clara? “O Capuchinho Vermelho pensou que não mais deveria deixar o caminho traçado para vadiar na floresta.”

O conto é normalmente apresentado como um aviso às crianças, nomeadamente às raparigas, para que tenham em conta os perigos que as espreitam e desconfiem de tudo e de todos, a fim de se furtarem a encontros indesejáveis e evitarem acabar na barriga de um lobo.

Esta visão moralista remonta à versão truncada de Perrault, publicada no final do século XVII – infelizmente mais conhecida em França do que a dos Grimm – e na qual o episódio do caçador a libertar a menina e a avó do ventre do lobo foi esquecido. Contrariamente à versão dos Grimm, o conto de Perrault acaba mal:
— Avozinha, que dentes grandes tens!
— São para te comer melhor!
Ao dizer isto, o lobo mau saltou sobre a menina e comeu-a.


O que autoriza o autor a concluir a aventura com a seguinte moralidade:

Assim se vê que as crianças
Sobretudo as meninas,
Belas, bonitas e gentis,
Fazem mal em dar ouvidos aos outros,
Não sendo assim de estranhar
Se um velho lobo as tomar de manjar.


Três séculos depois da sua publicação, quantas gerações de crianças não estão ainda traumatizadas pela versão de Perrault? Quantos pesadelos e medos se lhe poderão atribuir? Se o lobo tem a última palavra, então a vida é uma selva impiedosa, onde impera a lei do mais forte.

A única esperança que os fracos e os ingénuos têm de sobreviver é obedecendo estritamente às recomendações e às ordens que lhes são dadas. Toda a liberdade lhe está interditada, porque cada esquina guarda um predador cruel que os espera. Que visão terrível da vida! Se os lobos podem comer capuchinhos vermelhos à vontade, então a vida é injusta, e só podemos responder a esta injustiça com cinismo e desespero.

Na realidade, esta interpretação redutora do conto feita por Perrault é um puro contra-senso. Na sua versão completa, O Capuchinho Vermelho leva-nos a libertar-nos do medo do lobo mau, e a tentar explorar o desconhecido sob a protecção do caçador.

Outras variações deste conto reiteram o tema do predador enganado, nas quais o herói consegue libertar-se da sua armadilha, tal como em Barba Azul ou em contos com o diabo. O Capuchinho Vermelho é um conto de vida, de amor, um conto de Primavera que nos convida a alargar até ao infinito o nosso campo de experiências e a libertar-nos dos nossos entraves. A fim de sentirmos plenamente a dimensão libertadora do conto, temos de entrar na história e ampliar o seu alcance.

Chaves activas do conto

A característica principal do Capuchinho Vermelho é ser apreciado por todos, sobretudo pela sua avó. O capuchinho de veludo que ela traz constantemente foi um presente da avó e é um sinal de identificação muito forte: é o símbolo vermelho do amor. Ao exibi-lo tão garbosamente, a heroína do conto auto-designa-se como “muito amada”. Este sinal corresponde à sua identidade profunda: o capuchinho vermelho é um amor apaixonado e vivo que protege e ampara.

Amada pela avó, a menina recebe um convite que lhe dá muito prazer: levar à avó doente um bolo, feito com leite de cabra, e vinho novo, que na Alemanha se costuma misturar com flores para o perfumar. O que o Capuchinho vai levar à avó são dons da Primavera e da renovação da natureza. Depois da longa separação que o Inverno impôs, o coração pode exprimir o seu amor total.

A alegria que a menina sente por ir visitar a avó vê-se diminuída pelas recomendações e pelas previsões negativas da mãe: Parte antes que o calor se faça sentir, vai com juízo, e não te desvies do caminho, pois podes cair, partir a garrafa e a avó fica sem nada. Quando entrares em casa dela, cumprimenta-a antes de observar todos os cantos da casa. A festa do coração é um pouco estragada por considerações fúteis e banais. Que pena! Além do mais, a mãe esquece-se de avisar a filha do verdadeiro perigo que a espreita: o lobo.

É esta incapacidade da mãe que vai permitir que a menina encontre o lobo de uma forma autêntica. Pelo caminho, a menina encontrou o lobo, mas como ignorava que se tratava de um animal feroz, não se assustou. O lobo, selvagem e calculista, é também um mensageiro da vida.

É ele que abre os olhos à menina para a beleza que a rodeia, mesmo se, entretanto, está a pensar na melhor maneira de comer a neta e a avó. Capuchinho, vê estas lindas flores em teu redor. Ouve os passarinhos que cantam alegremente. Caminhas como se fosses para a escola, enquanto tudo à tua volta é tão divertido. De repente, a menina sai do caminho estreito e rígido que a mãe lhe impusera para usufruir da natureza em seu redor.

O lobo tem por função despertar. Leva-nos a transgredir as leis restritas e rígidas. É óbvio que o contacto com ele é perigoso, uma vez que ele segue a sua natureza. Mas, sejam quais forem as motivações dele, a verdade é que as suas sugestões revelam o apetite de viver da menina, que se encontra até então inibido.

Graças a ele, abre-se uma brecha na vida monótona da menina, uma brecha que a convida a ver a natureza na sua plenitude. Tudo isto sem que a menina perca de vista o fim da sua caminhada: a casa da avó.

Não falta ao seu dever, apesar de parar para saborear os frutos da Primavera e da floresta. A primeira chave do conto é que ela se encontra simultaneamente dentro e fora do caminho e que a sua capacidade de sentir o que a rodeia se enriqueceu.

Assim, quando chega a casa da avó, o seu campo de consciência encontra-se desperto e mais próximo da intuição. Nota a presença de sinais diferentes do habitual, mesmo sem os poder interpretar: Meu Deus, como tudo está diferente. Costumo gostar muito de estar em casa da minha avó!

A intimidade com o perigo e a forma “selvagem” que este apresenta é a segunda chave do conto. Avó, que orelhas tão grandes tens! — É para te ouvir melhor, minha netinha. — Avó, que olhos tão grandes tens! — É para te ver melhor, minha netinha. — Avó, que mãos tão grandes tens! — É para te agarrarem melhor.

Sem que o saiba, a menina faz a experiência do lobo. Sem sentir medo, faz a experiência da selvajaria e da animalidade. Quem encontrou alguma vez um lobo neste registo? A sua experiência leva-a a ser engolida viva pelo animal.

Mas esta experiência de nada serviria se não aparecesse o caçador para libertar a menina e a avó. A consciência da experiência pela qual passou transforma a menina. O conto precisa que o chapéu vermelho luza no ventre do animal, qual obra alquímica, à semelhança da transmutação.

Tive medo! Estava tão escuro na barriga do lobo! diz o Capuchinho quando sai do ventre do lobo. Com a ajuda da avó e do caçador vai buscar pedras para encher a barriga do lobo. Trata-se de uma vingança ritual, que vai permitir à menina “colocar uma pedra” para marcar a experiência e exorcizar a sua descida aos infernos.

Esta história é a nossa história. O Capuchinho Vermelho representa a parte de cada um de nós que está a caminho de fazer descobertas preciosas.

Se acharmos que vivemos de forma muito limitada as situações que nos são caras, então o conto traz-nos uma chave muito activa para nos ajudar a libertar-nos dos nossos próprios entraves. Convida-nos a deixar-nos tentar pelo lobo. O lobo representa as ocasiões inesperadas da vida, que são estranhas ao nosso universo habitual, ocasiões temíveis, mesmo, que nos acordam e nos convidam a percorrer caminhos que correspondem a capacidades nossas que se encontram inibidas.

O conto propõe-nos que falemos com elas, sem, contudo, abandonarmos o nosso rumo primordial: caminhamos fora do caminho mas continuamos no caminho. Esta prática da atenção dupla vai contribuir para abrir a nossa receptividade e a nossa intuição, e vai permitir-nos viver as experiências que comportem ressonâncias desconhecidas.

Mas atenção, este programa audacioso só se justifica se houver um caçador que vele por nós e que nos salve de sermos engolidos. Ou seja, uma consciência desperta capaz de evitar que nos deixemos fascinar por atalhos nos quais nos arriscamos a perder a orientação, por experiências de desconhecido que nos incapacitem de vermos as coisas tal como são. É que os estados modificados de consciência podem conduzir ao esquecimento de nós mesmos.

Este caminho comporta riscos evidentes, já que a abertura à realidade selvagem pode comportar o encontro com um lobo devorador. Só devemos lançar-nos numa tal aventura se sentirmos que em nós existe a firmeza de um coração vigilante.