segunda-feira, 21 de maio de 2007

Algumas leves considerações acerca dos contos de fadas, da magia e da imaginação, ou talvez não

Maria Alberta Menéres
Imaginação
Porto, Ed. Asa, 2003


Excertos adaptados

Talvez se oculte dentro da palavra imaginação, a própria magia. Mais do que magia: a imagem recuperada ou inventada. Porque no universo da imaginação há estranhos e ignorados caminhos que levam a terras sonhadas e terras reais.


Onde podemos dizer que começa realmente a fantasia e acaba a realidade? Que memória nos atraiçoa? Que esperança nos desmente? Hoje em dia sabemos como são fundamentais para o crescimento das crianças as histórias de fadas, esses enredos onde a realidade e a fantasia convergem para um ponto de encontro e de compreensão – talvez para a constatação de que o bom e o mau, o feio e o bonito, são nomes de seres ou de objectos ou de situações vivendo lado a lado, inevitavelmente.


Diz Bruno Bettelheim que o conto de fadas tem um efeito terapêutico na medida em que a criança encontra uma solução para as suas dúvidas através da contemplação do que a história parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento da vida.


O conto de fadas não informa sobre questões do mundo exterior, mas sim sobre processos interiores que ocorrem no âmago do sentir e do pensar.


E as crianças entendem bem a linguagem dos símbolos dos contos. São elas que inventam no seu dia-a-dia o jogo do “faz de conta” e tantos outros que as divertem e distraem em tempos vividos entre a imaginação e a realidade.


São elas que necessitam de contrapontos para situarem a sua própria vivência e o seu equilíbrio. Talvez por isso não se deva “explicar” à criança o sentido dos contos de fadas. As imagens e as acções são “as palavras explicativas” dos contos de fadas.


Quem não se lembra da aflição que sentiu ao ouvir contar que, “de repente, a menina se viu perdida na floresta”? A criança que escuta atentamente a história logo se sente e imagina também perdida naquela mesma floresta imensa e desconhecida.


Quem conta a história vê-se envolvido em todo este processo. Um adulto que goste de contar histórias não escapa ao seu próprio fascínio e descobre a cada momento, a cada pausa, o efeito que as suas palavras e a sua expressão provocam nele mesmo e na criança que ouve, de olhos maravilhados.


As fadas dos contos podem ser fadas boas ou fadas más.


A fada é sempre, para qualquer criança, uma certa imagem da sua própria mãe. Em primeira análise, porque é ela quem a acorda de manhã, lhe dá de comer e de beber, a veste e a embala. Mas esta “fada” que a criança pressente na sua mãe, nem sempre lhe aparece com cara radiante! Quando a criança se porta mal, a mãe zanga-se com ela. E na ansiedade da vida de todos os dias, quantas vezes a mãe, cansada e desiludida, não se zanga com ela um pouco injustamente!


A criança revolta-se. E quando se é criança, qualquer pequena revolta pode ser profundamente violenta. A mãe pode aparecer de repente como a fada má. Fada má e fada boa ao mesmo tempo podem ser imagens projectadas.


Diz ainda Bettelheim que a divisão de uma pessoa em duas, a fim de manter a boa imagem inalterada, surge a muitas crianças como solução para um conjunto de relações demasiado difíceis de digerir ou compreender.


Quando uma criança se irrita com a mãe que ela adora, sabendo muito bem que não deveria irritar-se, está sem o saber a transformá-la em fada má ou em bruxa, ao mesmo tempo que preserva, no seu íntimo, a imagem da sua mãe inteiramente boa ou fada benfazeja. A fantasia da bruxa serviu-lhe para escoar toda a sensação de raiva que sentia, e para deixar liberta a imagem da mãe.


A criança, aliás, “divide” as pessoas que a rodeiam em boas e em más. “Divide-se” a ela própria, quando não se assume como culpada de coisas que fez e que a desgostam: chega a afirmar que não foi ela quem fez isto ou aquilo (que realmente fez).


É a preservação do lado bom contra o lado mau. A fada má, a bruxa, a madrasta das histórias de fadas, são tão necessárias como a fada boa, o pai compreensivo, a mãe adorada, o príncipe encantado.


Os contos de fadas garantem à criança que as dificuldades podem ser vencidas, as florestas atravessadas, os caminhos de espinhos desbravados e os perigos mudados, por mais pequeno e insignificante que seja quem pretende vencer na vida. E a criança, desprotegida por natureza, sente que também ela pode ser capaz de vencer os seus secretos medos, as suas evidentes ignorâncias.


Assim, aprende a aceitar melhor as pequeninas desilusões que vai encontrando no seu dia-a-dia, pois sabe que, à semelhança do que acontece nos contos, os seus esforços por se tornar melhor hão-de ter um dia a desejada recompensa. No seu íntimo, ela entende muito bem que as histórias maravilhosas são irreais – mas não as aceita como falsas, na medida em que descrevem, de um modo imaginário e simbólico, os passos do seu crescimento.


Num mundo já de si perfeitamente antagónico, ela intuitivamente “divide” tudo em bom e mau, para assim encontrar o seu equilíbrio.


E, no entanto, quantas vezes se inquieta: porque será, ela própria, obediente e teimosa, boa e má, valente e medrosa, uma contradição viva?


Através de imagens simples e directas, os contos de fadas, com toda a sua imaginação, ajudam a criança a destrinçar os seus próprios sentimentos complicados, ambivalentes, de modo a desviar cada qual para o seu lugar, evitando as confusões.


O conto de fadas sugere não só o isolamento e a separação dos aspectos disparatados e confusos da experiência da criança em coisas ou situações antagónicas, como também projecta estes em figuras diferentes, conclui Bettelheim.


Para quem escreve, assim como para quem lê para crianças, é essencial nunca escrever ou contar por contar. São de exigir os conflitos, as confrontações, as aventuras – ou seja: sentido e acção. Afinal, o que faz parte da própria vida.


É para nós um desafio escrever as novas histórias destes novos tempos, em que a varinha mágica pode ser muito simplesmente um interruptor de luz; a cabana da floresta; uma tenda de campismo; um cavalo alado; o mais recente foguetão espacial...


Por detrás da imaginação, quantas vezes escondida, está sempre a vontade de criar. O conhecimento dessa vontade não é de hoje, mas de há muito, muito tempo. Para Platão, ela nasceria do poder de um deus ou de um demónio. Ele chegou a falar de inspiração. Aristóteles e Horácio embrenharam-se pelos caminhos do estudo da poesia e da escrita apaixonada. Os antigos também invocavam as musas, essas misteriosas e invisíveis companheiras dos escritores e dos artistas em geral.


A tradição sempre acreditou que, espreitando sobre o ombro de quem escrevia, estava “uma outra vontade” que não a de quem exercia o activo ofício de escrever. Para os românticos, essa outra vontade era evidentemente a própria inspiração. Para Freud, ela morava no inconsciente de cada um. Para os surrealistas, ela existia no próprio acto de escrever e era provocada por ele mesmo.


Vontade, imaginação e criação conjugam-se para que, em cada época, se consiga extrair do mundo a essência dessa mesma época.

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