quarta-feira, 6 de junho de 2007

A Vovó-Lobo - Janine Teisson

Eu tinha um amigo. Chamava-se Artur. Ainda se chama Artur, mas já não é meu amigo.Desde o início das aulas que eu pensava como é que havia de fazer para o Artur ser meu amigo. O Artur é muito bonito. Gosto muito dos seus olhos castanhos e delicados por detrás dos óculos azuis. O cabelo, cortado à escovinha, faz lembrar erva preta. Tem orelhas pequenas, anda muito bem vestido mas tem tendência para pensar que os outros não valem “um tostão furado”, como diria a minha avó. A propósito da minha avó, eu disse ao Artur na hora do recreio:
— Artur, queres que te conte um segredo?

— Que segredo?

— Uma coisa muito importante. Não vais dizer nada a ninguém?

— Claro que não, achas que sou o quê?

Então disse-lhe ao ouvido:

— A minha avó é bruxa.

Ele até deu um salto.

— Já não há bruxas, isso era antigamente!

No momento em que eu ia dizer: ”Mas a minha avó é uma bruxa boa”, Íris, a magricela, aterrou entre nós como se tivesse caído do céu. Olhava para o Artur com ar provocador, com aqueles olhos grandes. A Íris era nova na escola, tinha chegado há dez dias, mas eu não falava muito com ela porque só queria ter o Artur como amigo.

Ela tinha ouvido a conversa. Falava muito depressa e gesticulava.

— Ah, então achas que já não há bruxas, Artur? Nunca ouviste falar da senhora da loja dos animais?

— Não.

— Aquela dos animais, no centro comercial, que dantes era uma loja de brinquedos, não estás a ver?

— Não, e o que é que isso tem a ver com bruxas?

— Vou dizer-te uma coisa, meu menino. A senhora da loja dos animais transformou todos os animais de pelúcia em animais verdadeiros. Não sabias? Todos os cães, os gatos e até a piton do seu terrarium. E, pode voltar a desfazer tudo quando quiser. Portanto, vê lá, nunca te esqueças do teu ursinho na loja dela, meu menino! Até se diz que ela transformou bonecos em bebés verdadeiros e que ela os…

O Artur estava vermelho, e julguei mesmo que ele ia atirar-se à Íris e começar a bater-lhe, mas não.

— Em primeiro lugar, não gosto que me tratem por “meu menino” — gritou em altos berros, batendo com força o pé no chão – e depois essa história dos brinquedos é ridícula e, quanto às bruxas, elas não existem!

— Existem sim, Artur, existem — disse-lhe eu — porque a minha avó também é!

— E o que é que ela faz para ser bruxa?

— Faz truques extraordinários, tem poderes…

— Que poderes?

— Basta começar a contar uma história e pronto, transforma-se! Pode transformar-se em tudo: em príncipe, em anão das montanhas, em abelha, ou simplesmente em bruxa.

O Artur encolheu os ombros, e a Íris, apontando-lhe o dedo ao nariz, disse-lhe, num ar muito sério:

— Artur, é melhor para ti que nunca te encontres com essa avó.

— Ah! ah! ah! E porquê?

A Íris levou-nos para longe dos outros, para o fundo do pátio, para ninguém nos ouvir.

— Eu conheço bem as bruxas — explicou-nos — e sei que elas existem. Na outra escola eu era especialista nesse assunto. As bruxas, agora, não usam chapéus em bico, não têm verrugas no queixo, podem trabalhar nos correios, na televisão, até as há que são professoras! As bruxas tornaram-se comuns!
Eu e o Artur ouvíamos o discurso da Íris, de olhos esbugalhados.

— Comuns?

— Sim, e sei que há uma coisa que elas detestam acima de tudo.

— Que coisa é essa? — perguntou o Artur.

— Detestam, acima de tudo, os malandros que não acreditam nelas.

O Artur encolheu os ombros.

— Pfff! Que grande palermice!

— Não te julgues assim tão forte, meu menino! — murmurou a Íris. — Eu cá também tenho os meus poderes!

— Não me trates por “meu menino”, que isso irrita-me.

— Ah, estás a ver!

— A ver o quê?

— Estás a ver, eu tenho o poder de te irritar, ah! ah! ah!

E foi-se embora a saltitar nas suas grandes pernas.

Artur estava furioso.

— Que palerma, aquela rapariga!

— Mas diz-me cá, Artur — perguntei-lhe eu — acreditas ou não que a minha avó é bruxa?

— Não, não acredito nisso.

— Mas juro-te, Artur, que ela é uma bruxa a sério!

— Isso é o que tu dizes!

Até o meu primo, que tem catorze anos, a trata por “vovó-Lobo”, estás a ver! Só tens de vir comigo, se tiveres coragem, e ficas a saber.

Na quarta-feira seguinte fomos a casa da minha avó. Antes de entrarmos, preveni o Artur:

—Durante a história, é preciso estar com os olhos fechados.

— Porquê?

— Se abrires os olhos enquanto ela está transformada em lobo, em papão ou em monstro, ela pode devorar-te!

O Artur levantou os olhos para o céu:

— Tretas!

Eu insisti:

— Vais abrir os olhos?

Ele respondeu:

— Claro, o que é que julgas?

Apertei-lhe o braço com todas as minhas forças:
— Por favor, Artur, não abras os olhos ou vai ser horroroso!

E depois a vovó abriu a porta.

Sentámo-nos no canapé. A vovó disse:

— Que história quereis que vos conte?

Com tanto azar que foi o Artur a pedir:

— A história do Capuchinho Vermelho.

Então, como de costume, ao sentar-se no sofá, a avó disse:

— Clic! Clac! Fechem os olhos para entrarem no conto e sairem dele sem qualquer dificuldade. Clac! Clic!

Depois começou a contar o passeio do Capuchinho Vermelho na floresta.

Não tinha pressa nenhuma, a menina de vermelho, e dizia com a sua voz ingénua:

— Oh! Que linda floriiinha!

E a flor respondia, a voar dali para fora:

— Não sou uma flor, sou uma borboleta! Colhe-me, se fores capaz.

O Capuchinho Vermelho cantarolava, lalalalalala, e de repente exclamou:

— Olha! Um morango silvestre!

E o morango respondia:

— Não sou um morango, sou uma joaninha!

E o Artur ria porque a borboleta e a joaninha tinham voz grossa. Eu pensava: “O Capuchinho Vermelho devia mas era usar óculos!”

De repente, o Capuchinho Vermelho parou de cantarolar e de saltitar. Alguém saiu de trás de um silvado. Ouviu-se o estalido das folhas. Senti que a vovó se transformava.

— Boas taRdes, encantadoRa menina!

Era mesmo o sotaque do lobo que arrastava os “R”. A voz passava-lhe por entre os dentes aguçados. Ouvia-se Flat! Flat! Eu disse baixinho ao Artur:

— Estás a ouvir a cauda do lobo a bater no chão?

Ele respondeu-me:

— Sim, estou a ouvir.

Eu murmurei:

— É assim que os lobos batem com a cauda, quando sabem que vão regalar-se a comer.

— Boa tarde, meu senhor! — disse delicadamente o Capuchinho Vermelho na sua voz fina.

Francamente, acho estranho que uma rapariga diga “bom dia, meu senhor”a um lobo.
— Onde vais, gRaciosa menina? — disse o lobo.

A vovó tentava adocicar a voz do lobo mas entre duas palavras ouviam-se fortes clac! clac! junto dos nossos ouvidos.

— Ouves as mandíbulas a bater?

Artur não respondeu. Certamente, começava a ficar com medo.

— Enquanto tiveres os olhos fechados, não tens de ter medo de nada — disse-lhe eu.

Apetece-me dizer a cada instante ao Capuchinho Vermelho: “Não respondas ao lobo! Vai-te embora! Corre depressa, ou trepa a uma árvore.” Mas tenho medo de que o lobo, irritado e cheio de fome, se vire contra mim. Então deixo aquela pateta do Capuchinho Vermelho responder.

— Vou a casa da minha avó que vive na floresta.

Se fosse eu, respondia antes: “Vou a casa do meu tio que joga boxe!”

Senti que o Artur também estava nervoso. Peguei-lhe na mão e disse:

— Chiu! É muito ingénua esta rapariga mas não se pode fazer nada para a ajudar.

— E onde é a casa da tua queRida avozinha? É longe daqui? — perguntou o lobo a dar aos dentes cada vez com mais força.

E aquela palerma a dar-lhe as informações todas:

— É fácil, depois do pinheiro grande, vire à direita e depois à esquerda, na quarta nogueira. É uma casinha com sardinheiras à janela.

Evidentemente, o lobo foi a correr para casa da avó. Não devia estar muito treinado na corrida porque arfava de uma forma esquisita.

Affu! Affu! Affu!

Chegou diante da casinha.

— Boas taRdes, avozinha, sou eu!

— Tu, que-quem?

— O Capuchinho VeRmelho!

— En-entra, minha meniina, en-entra.

A avó do Capuchinho Vermelho não é tão robusta como a minha e tem uma voz tremelicante.

E depois deve ser surda para confundir daquela maneira a voz da neta com a do lobo. Disse-lhe:
— Boom diaa, minha menina, coomo és simpááticaaa…

E o lobo cortou-lhe a palavra e o pescoço. Clac!

O lobo tem horror de comer avós, e por isso resmungava:

— Ugh! Esta carne é dura, insossa e fibrosa!

Eu acho que não era lá muito agradável para a vovó, mas o Artur riu-se daquilo.

— E o que é isto? Ah, Os óculos! Quase os engolia! Vamos antes pousá-los em cima da mesa-de-cabeceira.

E ouvimos o pac! ao pousá-los. Quando a velhinha, entre ruídos medonhos, foi engolida, o lobo arrotou. O Artur deu um salto e exclamou:

— Oh!

De seguida, o lobo tentou enfiar o pijama da avó, mas fazia tudo ao contrário: meteu a cabeça numa manga, e gritava, já quase sem ar:

— Eu MoRRo asfixiado! Eu sufoco! SocoRRo!

E o Artur tinha um riso contraído, mas não era capaz de se conter.

Por fim o lobo pôs a touca de banho da avó para esconder as grandes orelhas, uma touca de plástico com flores cor-de-rosa.

Eu tinha muita vontade de ver como é que ele ficava assim vestido, e até me apetecia espreitar pelo canto do olho, mas receava que o Artur abrisse logo os dois, porque ele é muito curioso.
O lobo ralhou com a sua voz grossa:

— O primeiRo que olhaR paRa mim, devoRo-o!
Cerrámos as pálpebras com toda a força.

O Capuchinho Vermelho chegou. Não estranhou que a avó lhe dissesse com voz grossa:

— AbRe a poRta, meu tesouRo!

Debruçou-se sobre o lobo para lhe dar um beijo. Ficou um bocadinho admirada quando viu os olhos grandes e a orelha peluda a sair da touca de banho, mas só quando o lobo abriu a boca é que ela disse:

— Avó, que grandes dentes tu tens! Tens uma dentadura nova?

O lobo respondeu:

— É paRa melhoR te comeR, minha menina!

Gostava que o Artur tivesse gritado: “Capuchinho Vermelho! Pega num pau e bate no lobo, depressa. Faz-lhe frente, nós estamos contigo!” Eu teria gritado juntamente com ele. Mas ele não dizia nada.

O canapé estremecia. Era o Artur que estava a tremer.

Como sempre, sustive a respiração e esperei que a menina do Capuchinho Vermelho fosse comida.

Aquilo demorava muito tempo.

O lobo saboreava-a e fazia muitos ruídos feios com a boca. E eu sentia que o Artur estava a ficar enervado. De certeza que estava farto daquele lobo.

E se ele lhe mandasse um murro na cara, como fez à Amélia, daquela vez que ela o tratou por ouriço-cacheiro por causa do cabelo curto!? De repente senti que ele ia abrir os olhos como tinha dito que faria.

O lobo iria comê-lo! Depois de uma avó desenxabida, os lobos ainda podem comer um Capuchinho Vermelho delicioso, um Artur com óculos e até uma menina rechonchuda como eu…
Então gritei.

— ARTUR! NÃO! — e atirei-me a ele para impedir que abrisse os olhos. O Artur deu um salto como se tivesse sido mordido por uma serpente.

Então eu abri os olhos.

Ainda bem que a vovó teve tempo de voltar a transformar-se em avó.

O Artur estava com a cabeça escondida debaixo de uma almofada e gritava:

— Nãããão! Nãããão!

A Vovó não parecia admirada e disse num tom de voz muito meigo:

— Clac! Clic! Acabou-se o perigo. Podem abrir os olhos. Clic! Clac!

Então, o Artur correu disparado para o corredor. Queria ir embora, tremia todo e devia estar a ver tudo desfocado porque os óculos tinham voado.

A vovó foi encontrá-los junto do telefone. Quando quis aproximar-se dele, o Artur gritou:

— NÃO!

— Artur, não podes ir assim para a rua sem óculos, é perigoso — disse-lhe ela. — Espera, vou endireitar-tos, estão todos torcidos.

Depois daquilo, ele bem deve ter visto que a minha avó era uma bruxa boa porque ela devolveu-lhe os óculos arranjados, dentro duma caixa com bombons.

Mas ele fazia um sorriso forçado. Ainda não estava calmo. Nem pegou num único bombom! Encostado contra a porta, só queria ir embora.
No dia seguinte disse-me, na escola:

— A tua avó é perigosa!

Aquilo fez-me rir.

— Dizes isso porque tiveste medo, Artur.

— Não, eu não tive medo, mas a tua avó é completamente maluca.

— Se voltas a dizer isso, Artur, deixamos de ser amigos.

— A tua avó é maluca, idiota, doida varrida.

— Acabou, Artur, já não somos amigos.

Eu tinha vontade de chorar.

Fui para o fundo do recreio e eis que Íris, a magricela, apareceu.

Anda quase sempre sozinha porque é nova, e quem fala com ela diz que é estranha. É verdade que às vezes usa palavras esquisitas que fazem rir o sr. Monjol, o nosso professor.

O ar triste da Íris transformou-se imediatamente num sorriso, e correu para mim.

— Magali (que sou eu), queria pedir-te uma coisa.

— Diz lá.

Ela hesitava, parecia que, de repente tinha ficado tímida! Depois lá se decidiu:

— Será que um dia podias fazer-me o obséquio de me apresentares à tua avó?

— Fazer-te o obséquio?

Eu estava tão admirada que não sabia o que responder. Ela julgou que eu recusava. Estava com um ar mesmo desiludido.

— Por favor, mostra-me a tua avó, nem que seja só de longe. Anseio por ver a tua avó Lobo! Gostava tanto de ver uma bruxa a sério! Sabes, é que sou uma especialista no assunto, mas nunca vi nenhuma autêntica e o maroto do Artur tem razão. Não vale a pena termos ilusões, a senhora da loja dos animais não tem nada de bruxa e os porcos da Índia que lá tem são animais verdadeiros. É evidente! Vais mostrar-me a tua vovó Lobo?






Janine Teisson
Mamy-Loup
Arles, Actes Sud Junior, 2003

tradução e adaptação

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