quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Um esqueleto no armário


Conhecemos os nossos filhos como a palma da mão. O formato das unhas, o recorte das orelhas, as risadas deles, os caprichos e as cóleras… É natural. No fim de contas fomos nós que os “fizemos”… No entanto, algo começa a escapar-nos desde muito cedo – pela simples razão de que a vida, a verdadeira vida, sempre nos escapa…

Eles têm os seus segredos, os seus “esqueletos no armário”, as suas angústias e perguntas: “Por que é que eu gosto dela e ela não gosta de mim?”, “E o papá, como é que ele se sentirá lá em cima? Estará bem, ao menos?”, “E Deus? Achas mesmo que ele existe?”

E nós, que os imaginávamos ainda na idade dos chupas-chupas, dos escorregões, damos com eles carregados de perguntas, de segredos. Nós, as “mamãs-corujas”, sentimos por vezes um assomo de nostalgia e pensamos: “Ainda tão novo… e já vem com estas perguntas!”

Sim, é verdade. É inútil esperarmos que ele calce 39 para o vermos interrogar-se sobre o curso do mundo. As crianças não se deixam enganar pelos nossos sorrisos postiços nem pelas nossas tentativas para as protegermos do mal. Não estão ao abrigo das pequenas feridas da existência e das questões metafísicas.

Também são picadas pelas urtigas do mundo, mesmo que, a cada dia que passa, nós, pais, tal como o Principezinho, tentemos aplanar os nossos pequenos mundos e expurgá-los de todos os embondeiros que possam vir a feri-las. Não nos deixemos enganar pelo seu silêncio. Mesmo antes do cataclismo da adolescência, os nossos filhos não vivem em nenhum mundo cor-de-rosa.

Aos 3-4 anos começam a ter consciência da morte. Por volta dos 10, sabem que ela é definitiva. Por isso, como falar-lhes da morte, da sexualidade, da amizade, do dinheiro, da tristeza e da angústia, da solidão e da camaradagem? Do divórcio e dos conflitos?


A criança cósmica

Filósofa lá no fundo de si mesma, a criança passa os dias num local, a escola, que responde a tudo… excepto às suas interrogações. Entre as aulas de Geografia, de Matemática ou de Formação Cívica, não há lugar para filosofias!

Cuidado para não sufocarmos à nascença a centelha de filosofia que existe nela. Por vezes, temos muita pressa em fazer das crianças pequenos adultos, cem por cento adaptados ao mundo real, verdadeiros campeões de adaptação, que trazem boas notas e correm do judo para as lições de violino, sempre a sorrir (mesmo que o sorriso seja postiço).

Cuidado com aquelas pressões que, conforme escreve Pierre Péju, mantêm a criança no que é infantil, para depois a precipitarem nos problemas da pré‑adolescência, sem nunca terem deixado aflorar as grandes questões. E se deixássemos de a amordaçar… E se nos esforçássemos desde o início por a abrirmos às grandes questões?


Período de latência, período de silêncio

A idade da razão é denominada pelos especialistas de “período de latência”. É um momento muito especial. Pressupõe-se que os nossos “ex-pequenos” tenham interiorizado os interditos. Já não choram nem gritam a plenos pulmões. Quando muito, queixam-se de alguma dificuldade em adormecer. Os pais respiram de alívio.
Este período abençoado, depois da fase dos “caprichos ao rubro” e antes da fase conturbada da adolescência, decorre de forma sub-reptícia. E, como não faz barulho, é fatalmente esquecido.

Mas não é pelo facto de a nossa “criança” ter hoje seis ou sete anos que ela se tornou mais sossegada. Pelo contrário: de acordo com os especialistas, a inquietação é o traço dominante deste famoso período. Embora menos espectacular do que o dos quatro anos.

Temos de reconhecer que a escola e a sociedade contribuem para “amordaçar” a criança. A partir da primária, tem de se dizer adeus à fantasia, aos joguinhos e aos escorregões no recreio. E coitados daqueles que não se põem na linha.

Mas as crianças adaptam-se a tudo. Adaptam-se ao papá que chega tarde, à mamã que não tem tempo para lhes responder, ao ritmo escolar que não é o adequado. É quase assustador, se pensarmos bem.


E a criança lunar?

Não critiquemos a escola. Também nós, pais, passamos o melhor do nosso tempo a lisonjear a criança real, a criança “solar”. E que tipo de discurso é o nosso? “O que fizeste nas aulas? Arruma o teu quarto, vai escovar os dentes (pelo menos durante três minutos), come os legumes e despacha-te!”

Uma espécie de “voz de síntese”, um tudo-nada metálica, que soa como um eco longínquo e nos lembra afinal o que detestamos: a repetição inexorável e arcaica dos “deveres” da existência. Mas, e a verdadeira vida? Por que a esquecemos tantas vezes?

Sem dúvida, devido à falta de tempo. Porque é preciso andar depressa! Porque, obcecados pelo desempenho, pelas boas notas e pela visibilidade das coisas, acabamos por só nos dirigirmos ao seu lado menos bom: a criança solar, que dorme, come, trabalha e aprende. E a criança lunar, o poeta que sonha, que pensa, que sofre em segredo? Muitas vezes fica esquecida. Talvez não saibamos como falar com ela…


Não ao cerco das perguntas!

Ao chegarmos a casa à noite, o que pretendemos é retomar um diálogo que não teve lugar durante o dia.

O nosso filho estava na escola, nós, no escritório. Temos de conversar. O que fazemos então? Recorremos a um interrogatório cerrado, do género: “Então, querido(a)? Como passaste o dia? Comeste bem?” Até ao inevitável: “Tiveste boas notas?”
Claro que tudo é feito com boa intenção. Mas isto soa a interrogatório policial, do género: “Nós temos meios de vos fazer falar!” De resto, os resultados são quase sempre decepcionantes. E o nosso pequeno entrevistado fecha-se no seu mutismo.
A solidão da criança é mais secreta do que a do adulto, diz Bachelard na sua Poética do devaneio[1].

É verdade, senhor poeta, é tão verdade que nós, mães, ficamos irritadas com os segredos dos filhos. Nós que, ao chegarmos a casa, gostaríamos tanto de, integralmente, “recuperar o nosso rebento”, de o ouvirmos contar como foi o seu dia. Só que… o rebento oferece resistência. E a comunicação demora a estabelecer-se.

As crianças detestam a intromissão, a curiosidade dos adultos. São exímias a escapulir-se às nossas perguntas. Fazem lembrar as enguias. Uma expressão de contrariedade, um suspiro: “Chega de perguntas”, “Deixa-me em paz”… “Está bem, desculpa”.


As histórias criam laços…

É aqui que entra a história contada à hora de dormir. A história cria laços entre os pais e os filhos, sobretudo numa época em que passamos o melhor do nosso tempo longe deles. Através da história contada ao deitar, não lhes falamos com todo o nosso poder de mães dominadoras, mas “comungamos” com eles, deste ou daquele problema.

Por meio do “deslocamento poético” e da distanciação, a história fala-lhes de um outro eu: uma personagem que não os angustia e que os encoraja a falar. Sente o seu filho triste, deprimido? Comece por: “Era uma vez”, uma distanciação no tempo que o “desangustia” e desinibe. Porque a personagem, o coelhinho, o pequeno ratinho, o principezinho ou a fada, é ele e um outro.

Quando ele ouvir a história da princesinha que se tinha fechado na sua torre, de tão triste que estava, ficará tranquilo – era tão longe, foi há tanto tempo – e a distância faz desaparecer a angústia.

Perante um diálogo mais difícil, a história permite recolher confidências de uma forma mais eficaz do que se se abordar os assuntos de uma maneira frontal. Recebe-se mais quando “se dá” do que quando se pretende tirar à força.

Da boca do adulto ao ouvido da criança, os contos são as primeiras confidências filosóficas. Pela primeira vez, a criança vive a experiência do universal: ultrapassa as fronteiras estreitas do “eu”, o gueto do “ego”… As histórias criam uma ponte entre nós e os outros e fazem-nos sair do casulo do nosso pequeno mundo.

Tornar-se adulto, escreve acertadamente Albert Jacquart no prefácio de Qui a lu petit lira grand[2], é ser-se introduzido num novelo de encontros. Sim, a leitura, aberta ao outro, cria um extraordinário mundo de encontros, porque convida à empatia e à emoção.


Emoção… e ideias

É a palavra-chave: emoção. E também aquela que diferencia a história do discurso moralizador. Não se imagina a que ponto o livro é capaz de transmitir emoção. À medida que as crianças o vão folheando, sentem a revolta da Cinderela, o medo de Branca de Neve, choram ao ouvirem o que diz a menina dos fósforos (que lhes fala também de Deus e do que está para além da morte).

Deliciosa leitura, aquela que é experimentada pelos primeiríssimos leitores. Daniel Pennac evoca esta maré viva em Comme un roman[3]: Satisfação imediata e exclusiva das nossas sensações: a imaginação expande-se, os nervos vibram, o coração bate apressado, a adrenalina sobe...

As histórias falam também de subconsciente a subconsciente, e não do córtex ao neo-córtex! A emoção que as crianças sentem diante da leitura de uma história abre nelas como que uma brecha…

Os olhos brilham, os sorrisos abrem-se, o rosto ilumina-se, o queixo treme. Algo se passa, diz o poeta, alguma coisa oscila. Porque a emoção é um inevitável vector de ideias, de longe bem mais eficaz do que qualquer discurso racional!

E, de repente, nesta íntima “oscilação” do ser, sentimo-nos prontos para compreender tudo: as pequenas feridas, as questões sérias, os sofrimentos dos outros. E os nossos. A emoção é uma extraordinária chave de acesso às ideias.


Um amorzinho em vez de outro…

Aos 5, 6, 7 anos, o nosso filho deixa progressivamente a sua babete, o seu paninho de estimação, o seu velho ursinho de pelúcia. Deixa o mundo do amorzinho exclusivo, para entrar no dos amorzinhos múltiplos, por outras palavras, no da filosofia, no da história, no dos outros. Mas não terão também as histórias a função de permitir uma transição?

Vejam os mais pequenos, que chegam orgulhosamente ao infantário ou à escola, de manhã, trazendo na mão um pequeno livro, uma história que lhes fala deles próprios, uma história com que, durante todo o dia, se deleitarão – mesmo sem saberem ler. E vasculhemos também as nossas sacolas: há sempre um velho livro, de folhas já gastas, ao lado de uma fotografia de férias ou de um pequeno caderno.

A história da noite tem também uma função terapêutica e transicional. Saboreamo-la como uma guloseima, antes de adormecermos. Como uma luz de presença no corredor, que nos une aos outros antes do mergulho na noite.


O ritual da história da noite

Estas histórias da noite são um momento de magia roubado à vida. Instalamo-nos confortavelmente, esquecemos tudo. As discussões, as pequenas feridas, as censuras, os dentes não lavados. Pais e filhos vêem-se pouco? É preciso manter vivo o ritual da história contada antes de adormecer: minimum vital, pausa indispensável.

Lemos à noite: a criança sente-se protegida por múltiplos rituais. Daí as crises de lágrimas quando se vê privada da história da noite – é pior do que ser privada de sobremesa. Adoptamos rituais relacionados com a história, procurando criar um ambiente apropriado: apaga-se a luz, acende-se uma pequena lâmpada, faz-se silêncio.

Apanhamos o tom, modificando a voz. Uma voz muito grossa, uma muito fininha para os ratinhos, etc. Sobretudo, deixar aflorar a emoção… Em suma: é preciso empenho. Já repararam que, quando lêem uma história “em cima do joelho”, os nossos filhos podem pedir outra, e depois outra? Mas, quando ficam realmente satisfeitos, não costumam pedir mais…


Pequenas pedrinhas brancas… para pequenos polegares pensantes!

A história é a guloseima, antes da longa separação da noite. É como uma lampadazinha que a criança poderá meter debaixo do travesseiro. Uma ideia, uma imagem para afagar, para chuchar, para remexer em todos os sentidos. É o que os bebés pressentem quando se lhes dá um livro, que eles viram de pernas para o ar vezes sem conta! “Sim”, dizem na sua linguagem. “Há alguma coisa de essencial e de misterioso. O livro é mágico.”

Lendo uma história aos nossos filhos, fornecemos-lhes uma mão cheia de pedrinhas brancas – que os pássaros não comerão. Levá-las-ão consigo, ao longo do caminho, rumo à floresta obscura. Perdidos no escuro, assolados de perguntas, dúvidas e angústias, saberão desenvencilhar-se. E tirar proveito delas.



[1] Gaston Bachelard, Poética do Devaneio, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1988.
[2] Causse Rolande, Qui a lu petit lira grand, Paris, Plon, 2000.
[3] Daniel Pennac, Comme un roman, Paris, Gallimard, 1995.

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