quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Os contos como espelho



Prática do conto como auto-conhecimento


O conto é um espelho mágico no qual somos convidados a mergulhar, a fim de nos reconhecermos. Não no sentido de nos afogarmos numa auto-contemplação estéril, como Narciso, mas antes no de nos observarmos tal e qual somos, para além das aparências.

Em A Bola de Cristal, por exemplo, o herói parte em busca de uma princesa encantada que espera ser libertada. Mas quando a encontra, a princesa parece-lhe repugnante. Esta adverte-o: “O que vês não é o meu verdadeiro rosto. O Grande Mágico tem-me em seu poder. Por causa dele, os homens só me podem ver-me sob esta forma horrível.

Se quiseres contemplar a minha verdadeira aparência, vê-me no espelho. O espelho não se deixa enganar e mostrar-te-á a minha verdadeira face”. O herói olha para o espelho e vê nele o rosto, cheio de lágrimas, da rapariga mais bela do mundo.

Existe em cada um de nós uma princesa encantada que achamos feia e repugnante: são os nossos recalcamentos, que vivemos sob a forma de vergonha, inveja, cólera e desencorajamento, entre outros. Se aprendermos a ver esses instintos nesse espelho de verdade que são os contos, poderemos contemplar as verdadeiras belezas que habitam em nós e que choram enquanto aguardam a sua libertação.

Essas princesas só têm um herói: nós mesmos. É a nós que compete libertar o nosso reino interior e a princesa belíssima que nos espera. É a parte mais íntima do nosso ser que encontramos no espelho dos contos e que nos conduz à libertação e ao desabrochar pleno. Existe uma identidade perfeita entre nós e o conto. O conto é a nossa história.

É a encenação metafórica de aspectos nossos que ignoramos, recusamos, ou que não sabemos ver tal e qual são. Se conseguirmos penetrar no espelho e reconhecer a nossa imagem, se escutarmos o conto para nele encontrarmos aspectos concretos da nossa existência, bastar‑nos-á pôr em prática as suas propostas e viver a nossa vida segundo esse modelo de verdade.

Somos feitos da mesma maneira que os contos são feitos e a função dos contos é lembrar-nos isso mesmo. Se não nos lembramos, é porque estamos sob o feitiço de um Grande Mágico, que nos subjuga, seja através de condicionamentos mentais, seja através das representações falseadas da realidade. O conto tem por fim acordar a nossa estrutura de verdade profunda, levar-nos a experimentá-la e a pô-la em movimento, a fim de que possamos harmonizá-la com o arquétipo ideal.

Os contos de fadas convidam-nos a uma mudança miraculosa. Funcionam para nós como uma memória ancestral, conservada através de relatos populares, cuja aparente insignificância permitiu evitar adulterações dogmáticas. Mas não nos deixemos iludir: os contos de fadas transmitem, à sua maneira, a mesma sabedoria que as Sagradas Escrituras. São um repositório de conhecimentos incrivelmente ricos, dos quais podemos alimentar-nos se conhecermos o código e as regras.

Devido ao poder e à simplicidade das suas imagens, são formas de nos ajudar a despertar e operam a diversos níveis da consciência. A análise do conto propõe-nos um atalho atraente para o interior de nós mesmos, e convida-nos a efectuar um verdadeiro trabalho de auto‑conhecimento e de transformação.

Os contos são mais do que ensinamentos. São uma verdadeira iniciação, misteriosa e mágica, quase sagrada. Como todas as obras de arte tradicionais, são sóbrios em meios mas ricos em símbolos e arquétipos. Os contos são um enigma cuja resolução deve ser procurada no nosso interior e não neles mesmos.

Mesmo quando nos foram fielmente transmitidos pela tradição popular, os contos estão impregnados das características culturais dos países onde são transmitidos. Mesmo que possuam um fundo ancestral comum e transmitam as mesmas mensagens essenciais, fazem-no através de cenários diferentes, provenham eles da Europa, da África, da Ásia ou da América.

Neste livro estudaremos apenas contos de fadas provenientes do repertório europeu, por uma questão de coerência. Se a maior parte deles é dos irmãos Grimm, é porque os irmãos Grimm, souberam, no início do século XIX, transcrever com sobriedade os contos populares do seu tempo.

Este respeito na recolha destas narrativas populares permite-nos ter hoje acesso a um repertório autêntico e fidedigno, o que nem sempre acontece com os “autores de contos”, tais como Perrault ou Andersen, para só citar os mais conhecidos, que se afastam “criativamente” da tradição. Não nos interessa o estudo do conto enquanto obra literária, mas enquanto chave de acesso a um melhor auto-conhecimento.


O conto enquanto desafio à mudança: como a pôr em prática

Desde que compreendamos a sua mensagem, os contos podem conduzir-nos à nossa própria realização pessoal, apesar de todos os obstáculos, provas e frustrações. Os contos de fadas convidam-nos a viver o Todo-Possível
[1], para além das nossas limitações. Ou seja, convidam-nos a viver a totalidade da realidade, visível e invisível. Para que isso ocorra, são-nos propostos procedimentos muito concretos e precisos.

A primeira coisa que devemos fazer é ouvir ou ler os contos, deixando que as imagens e as sensações surjam livremente, como se estivéssemos a sonhar. Neste estádio, é importante não tentarmos interpretar o sentido da história ou dos símbolos. Temos de experimentar interiormente o que as personagens vivem e sentem, a fim de que o poder do conto e das suas imagens possa atingir o seu pleno desenvolvimento.

As crianças sabem predispor-se instintivamente à escuta dos contos. Os adultos sentem uma maior dificuldade, por causa das barreiras mentais e dos juízos de valor que abafam frequentemente a emoção. Temos de nos colocar em sintonia com o conteúdo da história e seguir atentamente as mínimas peripécias, mesmo que nos pareçam incompreensíveis.

Antes de estudar detalhadamente as regras precisas que os contos nos ensinam, é bom saborear a sua magia e abordá-los com um coração de criança. Esta abordagem exige humildade da parte do ouvinte ou do leitor e é um acto de fé face à porção de verdade que a história traz até nós.

Quando o ouvimos pela primeira vez, o conto raramente nos transmite logo a sua mensagem. Esta aparece com subtileza e, lentamente, vai-nos iluminando por dentro, até se transformar num espelho de nós mesmos. Esta história é a nossa história e nós somos as personagens do conto. Cabe-nos a nós senti-las como aspectos de nós mesmos.

A fim de explorar e vivenciar esta estrutura de verdade sobre a qual se modelam os contos, propomos, neste livro, um percurso constituído por cerca de quarenta contos, retirados, na sua maioria, do repertório dos irmãos Grimm. Faremos com esses contos um jogo de espelhos com os diferentes aspectos da nossa vida.

Estes contos estão repartidos por dez chaves essenciais, chaves mágicas que nos permitem abrir o mundo maravilhoso do Todo-Possível e aceder à mudança milagrosa. Estes contos não foram escolhidos ao acaso, embora pudessem ter sido escolhidos outros, já que no mundo da Fecundidade tudo pode frutificar e já que num conto encontramos todos os outros contos.

Depois de o termos lido e de termos deixado o conto ecoar dentro de nós, extrairemos dele as chaves activas, a fim de experimentarmos as suas correspondências. Poderemos então procurar o nosso reflexo no espelho do conto, antes de abordar a execução do conto através da prática de certos exercícios de imaginação criativa ou de atenção consciente, que nos permitirão prolongar a vibração mágica do conto até ao cerne do nosso quotidiano, integrando as suas verdades na nossa existência. O convite do conto permitir-nos-á resumir o essencial da sua mensagem numa fórmula viva.



[1] O Todo-Possível é sinónimo da dimensão oculta da realidade.

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