quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Os Músicos de Bremen ou como encontrar o sentido da vida


ou como encontrar o sentido da vida



Encontrarmos o verdadeiro sentido daquilo que vivemos consiste em descobrirmos o nosso lugar no seio da realidade total. O princípio da Fecundidade pode trazer-nos esta visão sempre que se serve de nós para levar a cabo os seus intentos, como o demonstra o conto Os Músicos de Bremen.

Os Músicos de Bremen

Era uma vez um burro que, durante muitos anos, tinha transportado sem descanso sacos de farinha para o moinho. Agora, no entanto, estava cansado, tão cansado que já não conseguia fazer o trabalho. O dono pensou então em livrar-se dele. Apercebendo-se de que o vento não lhe soprava a favor, o burro fugiu e pôs-se a caminho de Bremen, pensando poder entrar para a banda de música da cidade. Já caminhava havia algum tempo quando encontrou um cão de caça estendido no chão.
― Ó cão, por que motivo é que estás assim? — perguntou o burro.
― Ah! ― suspirou o cão ―, é que estou velho e cada dia sinto menos forças. Como já não sirvo para caçar, o meu amo quis matar-me. Por isso fugi, mas agora como é que eu vou ganhar a vida?
― Olha ― disse o burro ―, eu vou para Bremen onde penso entrar na banda de música. Vem comigo e tentarei que entres também. Eu tocarei alaúde e tu timbale.
O cão achou boa a ideia e continuaram juntos. Um pouco mais longe encontraram um gato com cara de enterro.
― Ó gato, o que é que te anda a correr mal? ― perguntou o burro.
― E quem é que pode estar contente ― resmungou o gato ― sabendo que tem a vida por um fio? Estou a ficar velho e, como prefiro deitar-me ao pé do lume e ronronar a caçar ratos, a minha dona tentou afogar-me. Escapei a tempo, mas agora, o que vai ser de mim?
― Anda connosco para Bremen. Tu até percebes de serenatas, portanto podes entrar para a banda de música da cidade.
O gato achou boa a ideia e lá foi com eles. Daí a pouco os três fugitivos passaram por uma quinta. Sobre a cancela, o galo cantava a plenos pulmões.
―Ei! Queres dar-nos cabo dos ouvidos? ― perguntou o burro. ― O que há contigo?
― Para hoje, anuncio bom tempo ― respondeu o galo. ― Mas como amanhã é domingo e haverá convidados, a dona da casa, uma mulher sem coração, mandou a cozinheira matar-me. Por isso estou a cantar com quanta força tenho e tenciono continuar enquanto puder.
― Anda daí, Crista Vermelha ― convidou o burro ―, acho melhor que venhas connosco. Nós vamos para Bremen, o que sempre é melhor do que ir parar à panela. Tens uma bela voz e, todos juntos, vamos dedicar-nos à música.
A proposta agradou ao galo e lá foram os quatro. Mas, como a cidade de Bremen ficava longe, à noite entraram numa floresta onde decidiram passar a noite. O burro e o cão deitaram-se debaixo de uma grande árvore. O gato instalou-se nos ramos mais baixos. Mas o galo, por uma questão de segurança, preferiu empoleirar-se o mais alto possível. Antes de adormecer, olhou em todas as direcções e viu uma luz. Chamou os companheiros e disse-lhes que não muito longe dali devia haver uma casa porque se via luz. O burro sugeriu:
― Era melhor levantarmo-nos e continuarmos o nosso caminho, porque aqui não estamos muito bem instalados.
Por seu lado, o cão declarou que um par de ossos com um pedacito de carne agarrada não lhe faria nada mal. Por isso o burro, o cão, o gato e o galo encaminharam-se para a luz que viam aumentar cada vez mais e, por fim, chegaram a um antro de ladrões que estava todo iluminado. O burro, que era o mais alto, aproximou-se da janela e espreitou lá para dentro.
― O que é que estás a ver, ó Cabeça Cinzenta? ― perguntou o cão.
― O que estou a ver? ― respondeu o burro. ― Estou a ver uma mesa coberta de coisas boas e vários ladrões sentados à volta dela, todos satisfeitos.
― Oh! De uma mesa assim é que nós precisávamos! ― exclamou o galo.
― É verdade! Se fôssemos nós à volta da mesa! ― suspirou o burro.
Então os quatro animais puseram-se a pensar na maneira de expulsar os ladrões. Finalmente descobriram-na: o burro poria as patas dianteiras no rebordo da janela, o cão saltava-lhe para as costas, o gato trepava para cima do cão e, por fim, o galo voaria para cima da cabeça do gato. Feito isto, começaram o concerto. O burro a zurrar, o cão a ladrar, o gato a miar e o galo a cantar. Depois entraram pela janela, num grande estrondo de vidros.
Ao ouvirem esta barulheira tremenda, os ladrões levantaram-se de um salto e, pensando que fosse um fantasma que tinha acabado de entrar, fugiram apavorados. Os quatro amigos sentaram-se à mesa e devoraram tudo, como se já não comessem há semanas.
Quando acabaram, os quatro músicos foram à procura de um bom sítio para dormir, cada qual segundo as suas preferências: o burro deitou-se no pátio em cima da palha, o cão em frente da porta, o gato em cima das cinzas ainda quentes da lareira e o galo empoleirou-se numa trave.
Por volta da meia-noite, os ladrões viram que já não havia luzes. Tudo parecia calmo e, por isso, o capitão mandou um deles ir ver o que se passava dentro de casa.
O homem encontrou tudo em silêncio. Foi à cozinha para acender a luz mas, tomando os olhos brilhantes do gato por brasas ainda acesas, aproximou deles um fósforo para avivar o lume. O gato não gostou nada da brincadeira. Saltou-lhe à cara, bufando, e arranhou-o. O ladrão apanhou um valente susto e correu para a porta das traseiras para fugir. O cão, que estava lá deitado, saltou e mordeu-lhe numa perna. Ao passar pelo pátio, o burro deu-‑lhe um par de coices, e o galo, que tinha acordado com toda esta confusão cantou do alto do seu poleiro:
― Có-có-ró-cócó!
O ladrão regressou a bom correr. Foi ter com o capitão e explicou-lhe:
― Lá em casa está uma horrível bruxa que me cuspiu para cima e me arranhou a cara com quanta força tinha. Diante da porta há um homem que me deu uma facada na perna. No pátio um monstro encheu-me de pauladas e, lá de cima, do telhado, um juiz gritou: “Tragam-mo cá já!” Consegui fugir por uma unha negra!
Nunca mais os ladrões se atreveram a voltar àquela casa. Pelo contrário, os quatro músicos sentiram-se lá tão bem que nunca mais de lá quiseram sair.


Chaves activas do conto

Os animais que este conto nos apresenta estão tristes e sentem-se infelizes. São velhos, a sua vida já não tem sentido, e os seus donos querem desembaraçar-se deles. Numa derradeira tentativa, tentam escapar à morte que os espera, lançando-se numa última aventura: vão para a cidade de Bremen para tocar na fanfarra local.

Este projecto é tão fantasista quanto utópico. Não percebemos muito bem o que pode a fanfarra de Bremen fazer com os préstimos de um burro, de um cão, de um gato e de um galo. No entanto, isso não detém os quatro companheiros. Não querem saber se é uma ideia absurda ou impossível. Trata-se do último conforto para aqueles corações cansados e adormecidos, a única coisa que os pode salvar do desespero.

Esta viagem a Bremen é o último combate numa guerra já perdida. É a necessidade interior de continuar a viver, apesar de tudo, que lhes inspirou a ideia desta viagem, agora o único fio condutor das suas vidas. Não tinham outra escolha: ou tentavam realizar o seu sonho ou morriam. Ao optarem pelo sonho, afirmam a preferência da vida sobre a morte.

O périplo que efectuam tem algo de muito vivo e de profundamente interessante. Estes quatro animais, de naturezas tão diferentes, encontram uma coesão no facto de terem uma direcção comum, indicada pelo sonho da fanfarra.
Formam, em conjunto, um grupo de músicos aprendizes a caminho de Bremen, que funciona para eles como uma espécie de paraíso. Esta coesão é assegurada pelo desejo comum de viver, quando a morte parecia ter chegado para todos eles. O que os faz vibrar em uníssono é o seu sonho comum.

A Fecundidade não vai tardar a precisar deles. Uma capacidade de vida tão forte não escapa à sua atenção, já que se pode servir dessa capacidade para insuflar vida nova na realidade. Os quatro animais não chegarão a Bremen: a sinceridade do seu coração valer-lhes-á serem poupados a uma decepção.

Em contrapartida, a sua capacidade infinita de vida vai servir para limpar a floresta dos malfeitores que decidiram refugiar-se nela. Graças aos quatro músicos, vai-se resolver uma situação que já dura há tempo demais.

Eles serão conduzidos na direcção da luz que brilha na floresta e à casa que os malfeitores ocupam. Inspirados pela situação que se lhes depara, os quatro animais improvisam a fanfarra que iam procurar em Bremen: o burro zurra, o cão uiva, o gato mia, e o galo canta, numa mistura de sons destinados a assustar os malfeitores. Os quatro formam um ser novo, um “fantasma” cuja aparição e gritos são suficientes para expulsar os ladrões da casa que ocupavam na floresta.

A sua coesão e a sua solidariedade sugeriram-lhes esta estratégia ficcional, que utilizam apenas durante o tempo necessário para expulsar os ladrões da casa. Quando se encontram finalmente sozinhos, já dispõem do tempo necessário para comer os restos que os malfeitores deixaram e para encontrar um lugar para dormir, “segundo a necessidade e a natureza de cada um deles”: o burro dorme no fumeiro, o cão atrás da porta, o gato diante do átrio e o galo na empena da casa.

A “fanfarra” continua presente mesmo que a sua forma se tenha dispersado. A sua coesão continua, mesmo enquanto dormem. Portadores de vida e do sonho da vida, refizeram a realidade em torno das suas necessidades e desejos comuns.

O malfeitor que regressa para ver o que se passa na casa, agora tranquila, é atacado e injuriado sucessivamente pelo gato, pelo cão, pelo burro e pelo galo, que acordaram sobressaltados. O homem vê este assalto como uma associação de imagens aterradoras (uma bruxa, um homem com um facalhão, um monstro negro e um juiz), uma recriação da fanfarra que os animais desejavam fazer.

Os quatro músicos nunca irão a Bremen. Vão ficar no local onde a vida lhes deu a resposta que procuravam. Se estiverem atentos à sorte que lhes calhou, verão que a vida se serviu plenamente da sua força de sonhar e que os fez participar de um desígnio mais vasto. Não será este serviço prestado o mais belo sentido que as suas vidas podiam encontrar?

Esta história é a nossa história. Se nos sentimos cansados da vida e queremos encontrar um sentido para ela, este conto convida-nos a não desesperarmos. Devemos deixar-nos motivar por uma ideia, uma causa, um projecto que nos pareçam suficientemente dignos de interesse. Não interessa que se trate de uma utopia ou de um sonho irrealizável.

O importante é pormo-nos a caminho e avançar, em vez de nos lamentarmos. Ao percorrermos o nosso caminho, encontraremos outras pessoas como nós, que estão também à procura do sentido para as suas vidas. Talvez nos acompanhem na nossa busca absurda e partilhem connosco uma coesão de vida e uma solidariedade que, a dado momento, possa transformar-se numa “fanfarra” viva e alegre – mesmo que esta fanfarra esteja muito longe da ideia que dela tínhamos.

Na nossa busca do sentido da vida, teremos acordado a vida em nós e a Fecundidade virá, qual milagre, procurar esta vida, a fim de se servir dela. Então, estes seres vivos em marcha acordarão outros seres vivos. A força de vida que todos juntos possuem emprestará uma vivacidade tal à realidade que esta se tornará elástica, mutável e gerará uma multiplicidade de formas.

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