domingo, 20 de maio de 2007

As folhas da tília - Rosa Mª Badillo Baena

Rosa Mª Badillo Baena
Contos para "delfins". Auto-estima e crescimento pessoal. A Didáctica do Ser
Porto, Asa Editores, 2003


Excertos



E fazei aquilo que a vós
não houve quem fizesse para que em cada
geração as árvores cresçam mais direitas.
Cayetano Arroyo



Quero explicar-vos, amigos, por que motivo escrevo contos. Até há muito pouco tempo não me apercebera da magia que ficou presa às minhas mãos quando, em menina, brincava com as folhas da tília. Não podia guardar por mais tempo este maravilhoso segredo e por isso aqui deixo a minha história.

Havia na minha escola uma árvore gigante e frondosa cujos ramos cresciam ao longo do grande muro do pátio onde jogávamos nos recreios. O seu tronco era pequeno, mas a sua força era imensa, pois conseguira chegar ao céu. Era pelo menos o que me parecia a mim, que a ia contemplar, enquanto lanchava, para em seguida brincar com as suas folhas. Recordo como me esticava para colher a mais bela das suas folhas, tão larga e verde, de tão requintado perfume, que para meus olhos ela continha em si todo um bosque. Devo dizer que foi esta a única árvore da minha infância, pois cresci numa rua órfã de amigos verdes. Logo que conseguia colher uma folha, acariciava-a por trás e pela frente, consolava-me ao tocar a sua superfície rugosa, depois cheirava-a profundamente, diria mesmo que a escutava através do meu nariz, e um pouco depois começava o ritual. Lentamente, muito lentamente, ia-a despojando da sua carne até lhe deixar apenas as veias que sulcavam a sua enorme superfície. Faziam-me lembrar grandes rios e pequenos afluentes que iam ficando sem o verde-mar dos seus vales e ribeiras para entretenimento de uma menina que brincava a ser feliz sem o saber. Acabado o ritual, a fragrância líquida daquela árvore impregnava as minhas mãos como uma oferenda anónima da vida ardente que palpitava dentro dela.

Cresci e nunca mais tive notícias da árvore da minha infância. Andei no instituto, na universidade, comecei a escrever coisas muito sérias e difíceis de entender para uma criança. Também eu me converti numa mulher muito séria que dava conferências, ensinava, escrevia artigos de carácter social e conhecia muita gente. Fui andando pela vida sem saber que algo despertava em mim, um mistério profundo que me acompanhara desde a infância. Esse mesmo que começou a florescer quando escrevi o primeiro conto. Até eu própria me admirava ao ver a forma como das minhas mãos fluíam as histórias fantásticas de muitos seres que como personagens nasciam do meu coração. Não conformada com isto, comecei também a escrever poesia, e foi exactamente uma amiga poetisa que me deu a primeira pista do que seria o grande segredo da minha vida. A minha amiga Alícia Wagner falou-me um dia de uma árvore venerada pelos alemães, que crescia junto das fontes e das escolas, e que era a tília. Cantou-me depois uma canção sobre ela, cheia de saudade; e despertou em mim uma estranha curiosidade de conhecer essa árvore que inspirava assim tão belos sentimentos.

Foi, sem dúvida, uma porta que se abriu para me dar a conhecer a origem da magia que impregnava as minhas mãos. Um dia, sem contar, abri um livro sobre árvores e deparei com uma grande tília com as folhas desenhadas em ponto grande. A minha memória, que permanecera adormecida, recordou finalmente a árvore que havia impregnado a minha infância de verde esperança. Senti um imenso amor por quem tinha sido a minha companheira de jogos, mas o que eu não sabia é que ia ficar impressionada ao ler as pequenas letras daquela página onde se apresentava a sua silhueta.

Dizia aí que aquela árvore era a favorita das fadas, que nela habitavam desde tempos imemoriais, por um motivo: deixar impressa em cada uma das suas folhas a fórmula mágica que iria impedir que os contos se acabassem no Mundo. Porque a criança que tocasse uma das suas folhas receberia o dom de escrever contos sobre as coisas sagradas deste planeta. E mais, mesmo que não quisesse escrevê-los, mais tarde ou mais cedo, acabaria por contá-los, pois a seiva havia de estimulá-la a imaginar histórias que teria irremediavelmente de parir se não quisesse morrer de tristeza por estar tão prenhe de contos e de lendas e não poder dá-los à luz.

Olhei para as minhas mãos e fiquei apaixonada pelo segredo que elas continham; por ter brincado com as maravilhosas folhas da tília quando era criança tinha agora a profissão mais formosa e luminosa: descobrir a magia sagrada que impregna todas as coisas, o profundo mistério que anima a vida e escrever isso, depois, em forma de conto. Senti-me deveras uma fada, porque agora aquela árvore mágica que crescia dentro de mim podia contar com todas as minhas forças para poder dar fruto. E escreveria um conto por cada uma das folhas com que brinquei.

Posso, pois, afirmar que os contos são um dos maiores tesouros da humanidade. Desde tempos remotos que nos têm ajudado a viver, dando-nos forças para superar os conflitos e encontrar a luz na escuridão. Foram os canais de transmissão de uma sabedoria tão profunda que acabaram por tornar possível passar através dos tempos o calor da humanidade e a importância de continuarmos vivos de geração em geração.

Creio que devemos dar especial atenção aos contos que nos revelam a problemática da existência, embora de forma simbólica, e nos oferecem alternativas; porque hoje, mais do que nunca, há que acreditar no poder da vida. Nós, adultos, sabemos que as condições sociais não oferecem horizontes às novas gerações. Vemos como boa parte da juventude se destrói, absorvida pela espiral do consumismo, da droga e da violência. E perguntamos: que sucederá aos nossos filhos, aos nossos alunos? Como educá-los para o mundo que lhes coube em sorte?

A sociedade exige profundas mudanças e lança-nos importantes desafios no sentido de evoluirmos através dos grandes conflitos que surgem diariamente. A escola e a família também têm de evoluir para uma educação mais consciente. É necessário que comecem a transmitir auto-estima às crianças, de forma a que, quando crescidas, possam enfrentar e transformar a realidade. A meu ver, o valor da auto-estima é o bem mais apreciado dos nossos tempos; permite à pessoa acreditar em si mesma e conhecer os seus recursos, a fim de criar o seu lugar no mundo.