domingo, 20 de maio de 2007

Viver com as fadas

Viver com as fadas. Entrevista com Vítor Quelhas
Notícias Magazine
(11 de Abril de 2004)
Texto de Sofia Barrocas



Viver com as fadas

Os contos de fadas abrem-nos as portas para o mundo dos sonhos, mas não só. São importantes para manter acesa a chama do inconformismo, da inquietação, no fundo para formar cidadãos capazes de perceber que a realidade nem sempre é aquilo que parece. E que está nas nossas mãos a possibilidade de transformar essa mesma realidade. Vítor Quelhas tem dedicado parte da sua vida a garantir que a tradição dos contos não se perca.

O que são contos de fadas?
Foram os franceses, no século XVII, a criar o termo conte de fée, ou conto de fadas, que depois vem a dar em inglês o fairy tale. Antes disso, o conto de fadas não existia propriamente. Havia contos de tradição oral, sobretudo no Centro da Europa, que iam buscar, de forma muito dispersa, elementos ao mito, às grandes tradições religiosas, a simbólicas de vários tipos, à literatura antiga, à medieval. São contos que evoluem de uma série de elementos sincréticos, que se vão desenvolvendo e constituindo em narrativas. A partir do século XVII emergiu uma tradição erudita do conto de fadas, que ganha força com contadores de histórias como Charles Perrault, que a recolhem a partir da tradição oral e a reescrevem. O conto de fadas moderno, tal como o conhecemos, tem origem nessa tradição erudita, promovida por pessoas como Perrault, os Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen. Deste modo, passou a ser uma forma de cultura elaborada e deixou de ser uma mera literatura oral cultivada e transmitida sobretudo pelas populações rurais, tornando-se uma cultura de salão.

E eram lidos ou contados?
Nessa altura passam também a ser escritos, o que se deve à invenção da imprensa, no século XV, e à crescente alfabetização. As classes elevadas aprendem a ler e tornam-se capazes de reproduzir, porque se tornou moda, as narrativas orais por escrito.

Como caracteriza o conto?
Nos contos de tradição oral europeia há dois tipos de componentes: um, puramente oral, que tem a ver com eventos locais que são fantasiados e contados como histórias fabulosas, de pasmar. E outro, com as narrativas populares, que aglutinaram imaginários religiosos e simbólicos, cristãos e pré-cristãos, mitos provenientes da Antiguidade, enraizados na mitologia céltica e greco-romana, que se constituem como narrativas autónomas, não necessariamente ligadas ao que acontece, ao que se conta de forma efabulada. Interessante na tradição estritamente popular do conto é a falta do elemento feérico, encantatório. A tradição oral popular portuguesa, por exemplo, é constituída por narrativas curtas, muitas vezes cruas, pragmáticas, despojadas do elemento feérico, profundamente mágico.

Sem fadas, duendes, magias?
Nada como nos contos de Grimm ou de Andersen. Têm personagens de tipo diferente, quase prosaico, que têm muito a ver com o universo do conto português. Coisas espantosas, como as almas penadas, a bruxa, a moira, o lobisomem, o olharapo, típicas do imaginário popular português, mas que não são exactamente a bruxa, a fada, os animais de que falam os contos feéricos. São mais personificações das fantasias e medos da aldeia.

Isso é específico de cada cultura ou há elementos comuns nas diversas culturas?
A Índia, a China, assim como as culturas africanas e latino-americanas, têm contos populares espantosos. Aí, o conteúdo simbólico, arquetípico, é muito forte, porque esses contos normalmente são versões populares de problemáticas de carácter religioso, iniciático e filosófico que em parte se encontram também nos Grimm.

As que sempre ocuparam a cabeça dos homens...
De onde viemos, quem somos, para onde vamos. Há toda uma tradição popular que veicula esse questionamento universal. E depois há a que veicula apenas os fantasmas e as fantasias pessoais, os medos e superstições de uma comunidade local. São coisas diferentes. Esta última é feita de efabulações, que tendem a gerir tabus, interditos, morais estreitas, o que a aproxima muito da fábula.

Há diferença entre a fábula e o conto de fadas?
A fábula tem uma «moral da história», o conto de fadas não. Os contos de fadas propõem uma descoberta ética, e por isso não aparece a problemática da formiga e da cigarra...

A fábula também vem da tradição oral?
Vem. A tradição oral tipicamente portuguesa tem muito de fábula: quer ser educativa, dizer às pessoas o que elas devem ou não fazer, tende a veicular uma moral, um comportamento social. Ao passo que o conto de fadas não, subverte aquilo que se chama não somente a cultura estabelecida mas a ordem racional estabelecida. Quando se começa por «Era uma vez» coloca-‑se a criança no domínio do intemporal, do não-tempo, onde tudo é possível, a Terra do Nunca onde Peter Pan gostava de levar os amigos e mostrar-lhes uma nova dimensão das coisas, outra ordem de possibilidades...

De onde ele nunca queria sair…
Porque é tão mágica, tão fabulosa, tão maravilhosa, encanta tanto, que remete para uma realidade paralela. Essa realidade paralela é, no fundo, o outro lado das coisas, a realidade criativa e paradoxal dos nossos sonhos – por isso é que a psicanálise se interessou pelo conto...

Os contos são para crianças ou para adultos?
As narrativas populares não são especificamente para crianças, embora tenham um elemento de sedução muito forte para elas – que estão muito mais próximas deste imaginário, do inconsciente arquetípico, da imaginação activa. E os adultos também adoram essas narrativas precisamente porque os introduzem nesse elemento que tende a ser esquecido pelo adulto com a socialização, a aprendizagem excessivamente dirigida e a extrema especialização social – no fundo, a racionalização do significado das suas relações sociais, de uma imagem do mundo unívoca, da forma como sente, como pensa. Por isso, o acesso ao arquetípico só se faz através do sonho ou da experiência psicótica – o que neste caso é uma patologia.

Precisamos de magia?
O feérico dos contos tem a ver com a imaginação e a criatividade. Não basta imaginar que uma coisa pode ser diferente. Tenho de ter a convicção de que posso introduzir nos acontecimentos essa diferença. É isso que o conto de fadas nos traz. Mais, nestes contos existe uma dimensão ética, um entendimento em liberdade. Impedem que sejamos transformados apenas em instrumentos institucionais, preserva o espaço do indivíduo. São importantes para mantermos a chama do inconformismo, da inquietação, e isso é fundamental para uma cidadania sadia que, creio eu, começa com os contos de fadas, com o maravilhoso, com a capacidade de dizer que as coisas podem ser diferentes e que nem sempre são o que parecem.

Bettelheim, na Psicanálise dos Contos de Fadas, fala da função estruturante do conto, da noção de bem e de mal em relação às crianças. O Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau, a conotação sexual que as personagens podem ter...

No caso da psicanálise dos contos de fadas existem duas tendências: a de tipo Bruno Bettelheim, que faz a análise dos contos pelo seu lado melhor – psicológico, antropológico, sociológico –, e que vai buscar a psicanálise não freudiana clássica do género «o Capuchinho Vermelho tinha um capuchinho vermelho porque representa a primeira menstruação da menina, e o lobo come-a». E a chamada psicanálise tradicional dos contos de fadas que é fortemente freudiana, altamente redutora, onde tudo é remetido para uma simbólica libidinal. Para esta, os contos de fadas são metamorfoses do imaginário da libido. Já Bettelheim vai mais longe. Ele abre a análise dos contos à dimensão do sonho, ao inconsciente, ao símbolo, no sentido antropológico das várias escolas de psicanálise, nomeadamente junguianas. É um universo respirável. Quando se lê a análise dos contos de fadas de Bettelheim aprendemos bastante sobre nós. Mas se apenas se lê as análises redutoras do conto de fadas em termos excessivamente freudianos (de matrizes redutoras) não se vai longe no auto-conhecimento.

E matamos o conto…
Completamente. Perdemos o direito à magia, no sentido imaginativo e criativo do termo. Há um elemento importante no conto: a relação entre emoções positivas e negativas. A criança, quando se conta um conto de fadas – esses onde ainda existe emoção primordial e crueldade primitiva, como é o caso dos de Perrault ou dos dos Irmãos Grimm –, identifica-se com o herói ou com a heroína, seja rapaz ou rapariga. Isso joga com a ambivalência sexual da criança, com a capacidade de lidar com o feminino e o masculino dentro de si. E há outro aspecto: o conto cria um cenário, a história, em que o herói se movimenta, e a criança, ao identificar-se com o herói, evolui nessa proposta de viagem, nessa demanda...

É uma viagem iniciática...
É. O herói vai passar por determinadas aventuras, onde se confronta com o seu próprio eu e não com a moral pré-estabelecida. Quando a criança pergunta «O lobo é mau?», o contador deve sempre dizer: «O que é que tu achas?», deixando-lhe a liberdade de descobrir. Muitas vezes a criança identifica-se com o lobo e quer saber por si própria como é e por que mataram o lobo.

Houve tentativas de os tornar «politicamente correctos».
Isso destrói o conto de fadas, porque o importante é que o herói – o eu da criança – se movimente numa determinada realidade que lhe é dada pelo conto, e que tem semelhanças com a realização dos nossos sonhos. Quando sonhamos somos heróis do mundo onírico, fazemos um determinado percurso e é aí que o risco e o inconfessável vêm à superfície – e temos de lidar com ele. Quando se conta um conto de fadas, a narrativa provoca efeitos na criança. A tensão aumenta, e depois segue-se uma solução e a criança experimenta o alívio, por exemplo. Quando uma criança ouve com atenção o verdadeiro conto de fadas, tudo nela acompanha o conto: a acuidade neuro-sensorial, o ritmo cardíaco, a respiração. Nesse sentido, o conto desempenha uma função muito estimulante e integradora. As narrativas confrontam a criança com dualidades: o ódio e a compaixão, a culpa e o perdão, a tristeza e a alegria, o medo e a coragem, a confusão e a lucidez, a mentira e a verdade. Mas o conto de fadas não diz o que é mentira ou verdade, é a criança que tem de lidar livremente com esse material.

É preciso saber contar.
Os adultos não têm histórias relevantes para contar às crianças, não sabem contos que as seduzam, que lidem com o imaginário delas. Um conto de fadas nunca deveria ser lido. O adulto deve aprender o conto e depois contá-lo, de viva voz.
O que os torna tão importantes?
É saber que dentro de mim estão todas as personagens dos contos de fadas e que eu próprio sou um herói de mil faces, sempre em demanda de significado, superação, maturidade. É este herói em nós que está por detrás das nossas decisões, afectos, sonhos. A criança começa muito cedo a lidar com as fantasias e as emoções ligadas ao desejo. A força estruturante de um conto de fadas é o desejo de o herói levar um certo percurso até ao fim. Passar por desafios que tem de superar, como o medo – veja João e o Pé de Feijão: o gigante que está nas nuvens, o João vai lá e rouba ao gigante uma série de objectos simbólicos. A força do gigante representa essa força primordial do desejo, muitas vezes de uma tremenda crueldade, a força do instinto de posse.

A Bela e o Monstro... é quase óbvio.
Exactamente. Mas a criança é convidada a lidar com isso. E com o universo das metamorfoses, quando a criança é levada a tratar com afecto e compaixão uma criatura disforme. Em A Bela e o Monstro, ela nunca supôs que por baixo do monstro de aparência terrível havia um príncipe encantado. E percebe que se eu não conheço o outro, se não dou tempo a que o outro se transforme perante mim, então não posso ter uma relação correcta com ele. Não posso julgar as coisas pela sua aparência. Lidamos com uma coisa que depois se revela como sendo outra. E há, sobretudo, a capacidade de amar e de respeitar a diferença, a compreensão de que o afecto e a compaixão provocam metamorfoses na relação com o outro.

Os contos podem ser violentos para uma criança.
Claro que sim. Há coisa mais violenta do que o caçador apanhar o lobo, abrir-lhe a barriga, enchê-la de pedras e depois atirá-lo para o rio? Mas não se deve caramelizar os contos: omitir a crueldade, o amor, a morte. São experiências fundamentais para a criança. Aprender a lidar com a morte como impermanência, com o fim das coisas, perceber que a realidade muda continuamente e que é possível lidar com isso.

Há também a sereiazinha, que troca a voz pelas pernas e cada passo que dá em direcção ao príncipe é extremamente doloroso.
Esse é o preço a pagar. O crescimento, a aquisição das faculdades de inteligência, de emoção, de actuação, de acção pressupõem transformações. Alguma coisa tem de ser deixada para trás, é o crescimento dialéctico no conto de fadas. Não podemos continuar a ser Peter Pans e há coisas que temos mesmo de rejeitar para crescer. Os contos de fadas têm a ver com todos esses desafios, tratam arquétipos do crescimento: o medo, o confronto, a superação. O herói da história tem de arranjar soluções para tudo e a criança descobre possibilidades de enfrentar o seu medo como uma coisa natural.

Está a perder-se a tradição dos contos de fadas?
Hoje prefere pôr-se a criança em frente à televisão do que contar-lhe uma história. E os adultos também têm uma relação estranha com o tempo. Acho que a maior parte dos adultos tem um problema complicado que é não saber lidar com o seu próprio crescimento. Eu, como toda a gente, faço montes de coisas. Mas uma coisa é certa: tenho tempo para contar contos de fadas ou para escutar alguém que diga que precisa de falar comigo. Sou capaz de rupturas para isso. Quando abdicamos de imprevistos, de espaços novos na nossa vida, começamos a caminhar para a morte. Porque não conseguimos introduzir vectores de criatividade, de novidade nas nossas vidas. O conto de fadas convence-nos de que somos capazes de criar essas rupturas.

Temos mesmo de ter tempo para os contos.
E é importante dizer aos pais: «Guardem o livro. Aprendam a história e contem-na». É muito mais sedutor para uma criança ver a disponibilidade de alguém. Bettelheim fala muito nisso: a disponibilidade do adulto para contar uma história a uma criança é também uma disponibilidade para si próprio, ou seja, há uma interacção de disponibilidade entre a disponibilidade da criança e a do adulto e isso é muito importante. Habituarmo-nos a que há momentos mágicos em que toda a disponibilidade pode ser restabelecida, a interacção do contar em que a criança e o adulto podem encontrar ao mesmo nível essa disponibilidade primordial de cada um de nós. É esse momento feérico em que tudo é possível, em que as coisas mais abstrusas, mais medonhas, mais terríveis, podem encontrar solução. Numa época em que estamos a ser submersos pelo pessimismo face à tragédia do mundo, isso ainda é mais relevante.

Essa tragédia sempre existiu...
Mas hoje entra-nos pela casa dentro. Devemos conduzir a criança para esse mundo de disponibilidade e dizer-lhe: «Será que a história do mundo pode ser contada de outra maneira? Será que a realidade pode ser reinventada?» Não tanto do ponto de vista da economia do problema, mas das soluções. O conto de fadas remete para soluções e não para problemas sem saída. Às crianças não lhes interessa o problema, mas a solução.

O que sugere aos pais?
É mais interessante fazer com que a criança recrie a narrativa do que darmos-lhe isso como uma coisa materialmente estática – caso do livro que está ilustrado. As crianças devem imaginar a sua bruxa, o seu gigante, o seu lobo, a sua noite, o seu dia, a sua lua, os seus medos, a sua coragem – cada criança viverá isso de maneira específica. Mostrar a um grupo «estão a ver como é?» é empobrecer essas crianças, é contribuir para as tornar cidadãos obtusos, porque foram habituadas a ter apenas uma imagem das coisas dadas, tornam-se seres conformados. Deste modo não são capazes de ter a sua versão dos acontecimentos, não são habituados a essa diversidade de reacções perante a mesma coisa, e ao respeito que as pessoas merecem por sentirem de maneira diferente e assim potenciarem soluções diferentes para a mesma coisa.

Acredita em fadas?
Daquelas fadinhas tipo Sininho, claro que não. Mas acredito que os nossos sonhos são povoados por seres fantásticos – pois há em nós elementos de carácter psicológico e emocional inconsciente e arquetípico, toda uma simbólica que acaba por se reflectir, de forma viva, nas nossas relações com o mundo. Atrás de cada objecto experimentado por nós, por mais inanimado que seja, há, de certa forma, uma consciência viva. O universo em que se vive somos nós que o fazemos, metamorfoseamos uma realidade que aparentemente é estática e animamo-la com o nosso imaginário. E o que é que acontece? Uma coisa é eu olhar para uma porta que é um objecto inanimado. Outra é sonhar com uma porta que se abre e dá acesso a um elemento irracional e simbólico: a porta que me leva para um outro mundo, para uma realidade diferente. Há elementos de carácter mágico-religioso nos nossos sonhos, que correspondem um pouco a essas portas que se abrem no conto de fadas, a esses seres pequeninos que servem de guias nas nossas aventuras.