quinta-feira, 13 de setembro de 2007

A prática da totalidade criativa


As chaves propostas, que nos permitem experimentar a magia dos contos na nossa vida de todos os dias, assentam sobre o princípio de que é a Fecundidade que nos permite realizar tudo. Podemos solicitar a sua ajuda para todas as questões da nossa vida e, graças a ela, atingir os nossos objectivos.

No entanto, se observarmos atentamente o que se passa, veremos que esses grandes momentos de inspiração ultrapassam em muito a nossa individualidade. A nossa realização pessoal contribui sempre, de forma determinante, para a realização de algo que ignoramos e que ultrapassa o nosso próprio projecto.

Os momentos de sincronicidade, os cruzamentos milagrosos de acontecimentos, bem como as coincidências fecundas, ilustram de forma concreta esta dimensão global do plano que gere a nossa vida. No entanto, só nos interessamos por eles na medida em que nos dizem directamente respeito.

Contudo, a Fecundidade realiza os seus próprios e vastos desígnios através de nós, segundo um plano no qual estamos incluídos, mas no qual desempenhamos um protagonismo limitado. Por que não tentar ver as coisas do ponto de vista da Fecundidade, em vez de o fazermos do nosso ponto de vista limitado?

Esta décima chave permite que nos coloquemos numa perspectiva universal, tentando apreender os desígnios ocultos da Fecundidade, a fim de colaborarmos com ela, deliberadamente, em algo que dará um sentido mais vasto à nossa vida.

O tapete ou a magia das coincidências

Era uma vez um homem que queria adquirir a sabedoria a todo o preço. Foi a casa de um eremita e disse-lhe: “Tu que és um homem sábio, dá-me um pouco da tua sabedoria, para que eu a faça frutificar. Tornar-me-ei um homem de valor, eu que agora não sou ninguém.”O eremita reflectiu um pouco e respondeu: “Dar-te-ei a sabedoria em troca de algo de que necessito. Preciso de um pequeno tapete que será muito útil a uma pessoa que com ele poderá levar a cabo o nosso santo labor.”

Ao sair de casa do eremita, o homem foi em busca de um mercador de tapetes, a quem disse: “Preciso de um pequeno tapete, que darei a um eremita em troca da sabedoria. Este tapete será muito útil a uma pessoa que com ele poderá levar a cabo o nosso santo labor.” O mercador respondeu-lhe: “Falas-me de ti, do eremita, e da pessoa que precisa do tapete. Mas que lucro eu com tudo isso? Se queres um tapete, traz-me fio para que eu o teça!”

O homem pôs-se à procura de uma fiandeira, que abordou da seguinte forma: “Preciso de fio para um mercador de tapetes, que vai fazer-me um tapete, que levarei a um eremita, que o dará a uma pessoa que com ele poderá levar a cabo o nosso santo labor. Em troca, o eremita dar-me-á sabedoria”. A mulher retorquiu logo: “Queres fio? Que me importa a mim o teu tapete, o teu eremita e o homem que precisa do tapete? Traz-me pêlo de cabra e dar-te-ei o fio.”

O homem continuou o seu caminho e encontrou um guardador de cabras, a quem deu parte de todas as suas necessidades. O guardador respondeu: “E que ganho eu com isso? Precisas de pêlo de cabra para atingir a sabedoria, mas eu preciso das cabras para te fornecerem o pêlo. Arranja-me uma e ajudar-te-ei.”

O homem foi procurar um vendedor de cabras a quem expôs todas as suas necessidades. O vendedor exclamou:”Na tua história só vejo pessoas a cuidarem dos seus interesses pessoais: um quer um tapete, outro quer fio, outro quer pêlo de cabra e tu queres sabedoria. E eu? Quem se preocupa com as minhas necessidades? Se as puderes satisfazer, talvez te possa ajudar. Preciso de uma vedação para guardar as minhas cabras durante a noite, para que elas não se percam.”

O homem pôs-se à procura de uma vedação. Foi falar a um carpinteiro, que lhe disse: “Sim, posso fazer-te uma vedação. Mas podias ter-me poupado os detalhes: os tapetes, o fio, a sabedoria. Nada disso me diz respeito! Em contrapartida, quero que me faças algo em troca da vedação. Quero casar e não encontro ninguém. Arranja-me uma esposa e depois falamos.”

O homem procurou, procurou, até que encontrou uma mulher que lhe disse conhecer uma rapariga que queria casar com um carpinteiro. “Mas que ganho eu com isso? Todos se preocupam com os seus interesses, mas ninguém se preocupa com os meus”. “Que queres em troca?” perguntou o homem. “Já provei de tudo mas falta-me uma coisa: falta-me a sabedoria”, respondeu a mulher. “Mas para alcançar a sabedoria é preciso um tapete!” impacientou-se o homem. “Não sei o que é a sabedoria, mas sei que não é preciso um tapete para a obter, tornou a mulher. “Não foi isso que eu quis dizer. Se encontrarmos uma esposa para o carpinteiro, ele constrói uma vedação; o vendedor de cabras dá-me uma cabra para que o guardador me dê o fio, que eu darei à fiandeira para obter o tapete que nos dará a sabedoria.” “Mas que história pateta é essa? Nem me vou dar ao trabalho!” irritou-se a mulher.

Diante de tantas dificuldades, o homem começou a desesperar da sua busca. Como podia aquela mulher não o ajudar, se o que procuravam era o mesmo? Como podia chegar junto do eremita de mãos vazias? E só pensava no eremita e no seu tapete.

Um dia, quando vagueava por uma cidade, falando consigo próprio, chamou a atenção de um mercador, que dele se aproximou para ouvir o que dizia: “É preciso um tapete para dar a alguém que poderá com ele levar a cabo o nosso santo trabalho.” O mercador abordou-o: “Viajante, não percebo nada do que dizes, mas tenho um enorme respeito pelos homens santos que, como tu, perseveram no caminho da verdade. Queres ajudar-me?”

O homem respondeu-lhe: “Como poderia resolver os teus problemas, se nem sequer consigo encontrar um pouco de fio? Mas tu tens ar de quem precisa de ajuda. Diz-me o que queres e farei os possíveis por te ajudar.” O mercador contou-lhe que tinha uma filha de uma grande beleza, mas que padecia de depressão. Talvez o viajante fosse capaz de a curar.

O homem compadeceu-se e foi ver a rapariga, que lhe confessou estar apaixonada por um carpinteiro. Uma vez o desejo da rapariga satisfeito, já que o homem conhecia o carpinteiro em questão, o homem pôde ir pedir ao carpinteiro que lhe construísse a vedação para levar ao vendedor de cabras. Este deu-lhe algumas, que ele levou prontamente ao guardador de cabras. Este deu-lhe o fio, que ele levou à fiandeira. O fio foi levado ao mercador de tapetes que lhe fabricou um.

Quando levou o tapete ao eremita, este disse-lhe: “Já te posso conferir a sabedoria, porque nunca terias encontrado este tapete se o tivesses procurado apenas para ti. Dou-to para que possas levar a cabo o nosso santo trabalho.”

Chaves activas do conto

A pergunta que o herói formula no início do conto está condicionada. Implica tantas projecções pessoais e limitações que corre o risco de não obter resposta. Mas o herói sabe colocar a sua questão à Fecundidade, através do eremita, o que indica um apelo e um abandono que podem vir a ser gratificados com uma inspiração.

O eremita reformula a questão, dando-lhe uma orientação nova: “Em troca do que esperas receber, traz um tapete que eu possa oferecer a alguém que dele necessite.”

A demanda do herói está votada ao fracasso, devido à sua forma egocêntrica de colocar a questão: “Se me deres o dom da sabedoria, tornar-me-ei um homem de valor. Neste momento não sou ninguém.” O sábio não contraria esta atitude limitada, mas, através do pedido que faz ao herói, tenta alargar os horizontes deste. Humilha-se ao fazê-lo crer que tem necessidade de algo, quando na verdade é ele que lhe vai ofertar um dom.

A busca, abstracta, está isolada da vida, mas o eremita faz com que “a sabedoria” se torne uma questão concreta e colectiva: “um tapete para qualquer pessoa”. A demanda do herói tornou-se global e pode agora abrir-se à Fecundidade.

A inspiração do eremita transformou a demanda separada do herói numa demanda global. No entanto, o herói parte para a aventura sem a abertura de espírito necessária e começa as suas buscas com a mesma limitação de horizontes que o fazia querer aceder à sabedoria. A sua busca é interesseira e visa apenas a obtenção de um resultado pessoal.

É por isso que só encontra no seu caminho pessoas interesseiras e passa de uns para os outros numa corrida absurda e sem fim, que ampliará o carácter irrealizável da sua demanda. Este estado de coisas manter-se-á enquanto o herói continuar focalizado sobre o seu interesse: obter a sabedoria.

Mas o carácter infrutífero da busca contribui para o crescimento da tensão dos contrários. Esta atinge o seu clímax no encontro com a mulher que também busca a sabedoria, e que se assemelha imenso a ele. Através dela, chegar-lhe-ão as pistas necessárias para a resolução do seu problema. A mulher não atinge o sentido profundo do que está em jogo e critica o herói. Isto marca o ponto de ruptura da tentativa encarniçada do rapaz ao querer aceder, a todo o custo, ao resultado, e faz nascer nele uma confusão total.

É no vazio instalado por esta confusão que a sua verdadeira necessidade se vai manifestar, embora ele ainda não a conheça. O rapaz já não deseja obter a sabedoria, uma vez que esta está agora fora do seu alcance. O pedido do eremita vem-lhe à memória e o rapaz dá-se conta de que nunca poderá satisfazê-lo.

Já não vê o tapete como um objecto de troca, destinado a proporcionar-lhe a sabedoria, mas sim como uma necessidade que o sábio tinha para ajudar outra pessoa. É esta falta que o sábio sente que o coração do herói vai querer satisfazer sem reservas. Esta abertura de coração vai permitir-lhe encontrar o mercador cuja filha morre de amores pelo carpinteiro.

Ao responder, de forma desinteressada, ao apelo do mercador, o herói retoma, sem saber, o fio condutor da sua busca. Ao reconhecer a legitimidade das necessidades dos outros, excepção feita à mulher que busca a sabedoria e que não tinha ouvido o apelo da Fecundidade, o herói está agora preparado para receber a sabedoria.

Por detrás deste alinhamento milagroso de factores, encontra-se o trabalho efectuado pela Fecundidade. O alinhamento só se pôde tornar efectivo mercê do abandono do herói e do seu empenhamento verdadeiro em trabalhar em prol da comunidade.

Espelho do conto

Os nossos pedidos são sempre à medida das nossas forças. Se chamarmos a Fecundidade em nosso auxílio, talvez consigamos reajustar-nos na direcção do Todo-Possível, até conseguir quebrar a separação que torna a sua realização impossível. Mas esta primeira inspiração não chega. É preciso que nos comprometamos inabalavelmente a seguir a sua orientação.

Para começar, é necessário sentir que o nosso pedido não diz apenas respeito a nós, mas pertence também à Fecundidade, cuja ajuda nós solicitámos. É através da nossa pergunta que outras perguntas podem ser respondidas. Se participarmos conscientemente na obra da Fecundidade, alcançaremos a realização que todos almejamos.

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